(*) Roberto Marx e Mauro Zilbovicius
(16/01/2011) – Encerrada a primeira década do século XXI, a indústria automotiva encontra-se em uma encruzilhada: o automóvel está em questão como objeto produtor de poluição, como meio de transporte causador de congestionamentos nos grandes centros urbanos, como artefato associado ao individualismo e a outras causas anti-sociais.
De fato, o automóvel ainda é o grande consumidor de combustível não renovável nos dias de hoje. Devido a isso, o século XXI pode marcar o fim de um determinado modelo de mobilidade, de negócios e de organização da produção, mas também pode apontar novos caminhos para essa indústria – o que significa oportunidades de novos negócios e necessidades inéditas de regulação.
A pressão social e legal por menores índices de emissão de gases de efeito estufa e por processos de reciclagem eficientes colocou na agenda a necessidade de desenvolvimento de novas formas de motorização. Por isso, está em curso um processo sem precedentes de introdução de novas tecnologias que podem transformar profundamente a dinâmica do setor: caso a motorização elétrica ganhe espaço significativo, as bases da indústria podem mudar, colocando pressão e aumentando o risco de sobrevivência para empresas, negócios e instituições tradicionais do setor. Tanto as fábricas como os sistemas de geração e abastecimento de energia podem mudar, tornando obsoletos muitos dos investimentos já realizados.
Mas este processo não afeta somente a engenharia do ponto de vista do desenvolvimento de motores e materiais. Grandes cidades dos países em desenvolvimento encontram-se próximas do caos, do ponto de vista da mobilidade urbana. Coincidentemente, é nestes países que a indústria automotiva tem crescido.
A questão da mobilidade não será resolvida somente com carros ambientalmente corretos, mas com políticas adequadas para nortear, integrar e incentivar outros meios de locomoção. Há um novo paradigma tecnológico e de mobilidade em gestação. Ele conviverá com o anterior durante longo tempo, e isso coloca desafios para cada um dos agentes no arranjo atual de negócios e de influência no setor – consumidores, empresas, governo, entidades formadoras de pessoas, órgãos reguladores e certificadores. É fundamental uma abordagem integrada e negociada para (re)definir o conceito do produto, os materiais, a motorização e as condições de seu uso.
No Brasil foram produzidos mais de 3 milhões de veículos em 2010. Mais renda, crédito, capacidade de produção, estabilidade social, entre os fatores principais, levam à expectativa de que, antes de 2025, este volume seja dobrado. Mas há escolhas estratégicas a serem feitas no que diz respeito ao tipo e ao conteúdo do produto que se irá produzir no Brasil. Respostas a estas questões são bem menos consensuais:
1. Qual será o conceito dos produtos aqui montados?
Até que ponto estes produtos acompanharão as tendências tecnológicas mais recentes da indústria nos países desenvolvidos? Será o Brasil um pólo de projetos e fábricas de produtos “antigos”, ambientalmente “sujos”, para gerar excedente que financie uma indústria da mobilidade limpa nos países centrais? Embora atentas às outras possibilidades de produtos, motorização e novos materiais, as montadoras atuais tendem a defender a tecnologia atual; sua liderança se dá em um mercado construído sobre o paradigma anterior. Posições mais arrojadas tendem a ser exploradas por novos entrantes que, sem comprometimento com o passado, vislumbram novas oportunidades de negócios. De qualquer forma, o Brasil não pode ficar à margem dos avanços tecnológicos que começam a reconfigurar o setor desde já.
2. Há oportunidades para uma inserção diferenciada de novos negócios/empresas criados no Brasil, no contexto dos desafios mencionados?
Empresas brasileiras são líderes globais em setores como o aeronáutico, de energia, entre outros. Este é também o único país que não dispõe de montadoras de veículos de capital nacional dentre os que possuem competências consolidadas em projeto de produtos e de produção. Competência tecnológica não parece ser obstáculo; há demanda e base produtiva para sustentar a produção e o consumo de produtos e serviços. Embora o chamado chr38ldquo;apagãochr38rdquo; de engenheiros também afete o setor automotivo, é inegável que a competência da engenharia automotiva nacional é flagrante e supera a de todos os demais países em desenvolvimento e certamente a de todos os demais que não possuem montadoras de capital majoritariamente nacional. Consolidar e ampliar esta competência a partir de uma estratégia de produtos e mercados que não seja definida unicamente pelas empresas é uma tarefa inadiável.
Em um setor maduro e estável não cabe investir em grandes empreendimentos. Mas este não parece ser o caso do setor automotivo. Justamente por conta da transição que pode levar à ruptura do padrão tecnológico, cresce a possibilidade (necessidade?) de se pensar a criação de empresas brasileiras que liderem cadeias de produção voltadas para a exploração de nichos de mercado globais.
As soluções técnicas, sociais e políticas capazes de superar a “crise” do automóvel e do seu uso ainda não estão definidas. A capacidade de compreensão em profundidade das mudanças em curso levará os variados atores da sociedade a interferir nesse resultado. Por isso, investidores, governo, instituições de pesquisa e profissionais precisam avaliar, integradamente, os cenários futuros e assumir posições. Cem anos depois do seu nascimento, uma nova indústria da mobilidade se avizinha. É necessário começar a vislumbrar e desenhar o futuro do Brasil neste novo cenário.
(*) Roberto Marx e Mauro Zilbovicius são da Fundação Vanzolini, entidade gerida por professores do Departamento de Engenharia de Produção da Poli-USP